Casa de São Cristóvão, Quinta do Tanque ou, como está prestes a deixar de ser, sede do Arquivo Público da Bahia (Apeb). O conjunto arquitetônico bem pertinho da Estrada da Rainha, após leilão recentemente anunciado, deve perder a coroa, mas não a majestade. Isso porque foi ali que o padre português Antônio Vieira (1608-1697) escreveu muitos dos seus famosos sermões, que lhe renderam, por parte do poeta e compatriota Fernando Pessoa (1888-1935), o apelido de “imperador da Língua Portuguesa”.
Do comentário de Pessoa, no início do século XX, até o finalzinho desse período, as relações de nobreza/realeza entre Lisboa e Salvador eram escassas. O marasmo só foi interrompido pelo desembarque do escritor José Saramago na capital baiana, em 1996, na ocasião da Festa de Iemanjá, a Rainha do Mar.
Único autor de língua portuguesa a faturar o Prêmio Nobel de Literatura, laurel máximo para qualquer escritor(a), o autor de ‘Ensaio sobre a Cegueira’ e ‘Memorial do Convento’ chegou a Salvador a convite de um amigo que, àquela altura, também era candidato fortíssimo dentro da academia sueca: o escritor Jorge Amado, que de tantas vezes cotado, viveu um final de vida frustrado com os ‘vácuos’.
Foto: Antenor Pereira/Acervo CORREIO |
Eles não ligam pra gente
Ambos, aliás, eram absolutamente revoltados com o fato de nenhum autor(a) em português ter sido contemplado com o prêmio, situação demonstrada no trecho do livro ‘Com o mar por meio: Uma amizade em cartas’, que fala da amizade (tardia, já idosos) dos grandes escritores.
Em carta de 9 de outubro de 1997, quase dois anos após visitar a Bahia, Saramago se solidariza com Jorge pelo fato de o baiano não ter vencido o Nobel, e nem ele próprio (ainda). Faltava um ano para isso se concretizar, mas o português já se dava por vencido.
“Querido Jorge, não há nada a fazer, eles não gostam de nós, não gostam da língua portuguesa (que deve parecer-lhes sueca…), não gostam das literaturas que em português se pensam, sentem e escrevem. Não tem metro que chegue para medir a estatura de um escritor chamado Jorge Amado, para não falar de outros bastante mais pequenos, no número dos quais a voz pública insiste em pôr-me”, escreveu Saramago, que na véspera de aniversário dessa missiva, enfim, chegou lá.
Em 8 de outubro de 1998, Saramago, aos 77, se consagrava, e Jorge Amado se alegrava, embora já bastante debilitado e recluso na Casa do Rio Vermelho, ao lado de Zélia Gattai.
“Se alguém merece o Nobel, esse alguém é José Saramago. Ao premiar a literatura portuguesa por meio de José Saramago, um dos mais expressivos escritores do mundo contemporâneo, o prêmio Nobel finalmente faz justiça à língua portuguesa. Ficamos, Zélia e eu, duplamente felizes, porque, além de premiar o escritor, o Nobel foi concedido a um grande e querido amigo”, dizia Jorge, em comunicado à imprensa.
Oferenda à Rainha
Saramago chegou ao Nobel aos 75. Tinha 73 quando desembarcou na Bahia para o Dois de Fevereiro, como mostra reportagem do CORREIO do dia 3 de fevereiro de 1996, e que já entrega no título aquilo que pode ter sido decisivo para o único Nobel da Língua de Camões: ‘Saramago deposita flores para a Rainha do mar’.
O traje também foi apropriado, assim como os demais protocolos. “Vestido de branco, escritor português prestigia Iemanjá e participa do ritual afro-baiano”, anuncia a reportagem, que não está assinada. No topo da página, a imagem do repórter fotográfico Antenor Pereira traz Saramago, de short e chinelinho, ladeado por Jorge Amado, o anfitrião do bairro, e Caetano Veloso, o veranista do Rio Vermelho, numa sacada da casa do cantor donde é possível ver, ao fundo, a Praia da Paciência e o Hotel Pestana – na época, Le Meridién.
A reportagem indica a agenda do portuga na cidade: “José Saramago chegou em Salvador na noite de quinta-feira disposto a conhecer um pouco sobre os locais que servem de inspiração ao seu colega baiano, Jorge Amado. Mas foi na festa de lemanjá que Saramago conferiu de perto os mistérios da religião afro-baiana. Ontem, vestido de branco, Saramago, um ateu convicto, depositou flores nas águas da Praia da Paciência, no próprio hotel em que se hospedou, o Enseadas das Lajes, numa reverência a uma das orixás mais festejadas pelo candomblé”, diz o texto, que ainda reproduz comentário do autor: “É a primeira vez que vejo uma festa como esta”.
Ao expressar isso, Saramago observava a multidão que já tomava conta das ruas do Rio Vermelho, a partir do jardim do hotel, que era vizinho à casa de Caetano.
A oferenda – com pedidos devidamente atendidos – foi precedida de compras no Mercado Modelo, onde provou um abará. Durante a festa para a Rainha do Mar, Saramago e Jorge, com convidados, almoçaram na casa de Caetano Veloso, ocasião em que Gilberto Gil também participou. O cardápio foi a frigideira de maturi, preparada em Santo Amaro, terra natal de Caetano.
Foto: Antenor Pereira/Acervo CORREIO |
Turista animado, Saramago também fez um passeio pelas ruas e praças do Pelourinho, que levam o nome dos personagens dos romances de Jorge, acompanhado da esposa, Pillar del Rei, e do seu editor, Luis Schwarcz.
“Comentou sobre a reforma ortográfica e defendeu maior entrosamento entre os escritores portugueses e brasileiros, além do fim das traduções dos livros portugueses e brasileiros editados no Brasil e Portugal”, menciona a reportagem, ao citar uma polêmica que reinava na época.
Fonte: Agência Brasil