Li esta semana um lindo ensaio do escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte, publicado na revista Estado da Arte. Uma comovente declaração de amor aos livros, tanto os já lidos como aqueles que nunca serão devassados por seus olhos – volumes incólumes e íntegros em sua nobre invisibilidade. Porque nós, que guardamos em casa esses pequenos monumentos de papel e palavras, sabemos que muitos deles permanecerão ali onde estão por anos ou décadas.
Pérez-Reverte não lamenta por esses livros que nunca serão lidos: “Cumprem sua função, inclusive ali, quietos, silenciosos, alinhados com seus títulos em suas lombadas. Posso abri-los, folheá-los, percorrê-los devagar, colocá-los na mochila para uma viagem. E ainda que eu jamais chegue a ler muitos deles, terão cumprido sua missão. Sua nobre tarefa.”
Ele finaliza assim o ensaio: “Os livros que eu nunca lerei me definem e me enriquecem tanto como aqueles que eu li. Estão ali, e eles sabem que eu sei. Se sobreviverem ao tempo, ao fogo, à água, ao desastre, à estupidez humana, um dia serão de outra pessoa. E graças a mim, que tive o privilégio de resgatá-los de seus milhares de naufrágios, unindo-os à minha vida.”
Conversando com um amigo sobre esse texto, ele comparou os livros a velhos amigos que nos convidam para um bom papo, acompanhado de vinho e blues. Fico imaginando quantos amigos deixo de fazer enquanto esses livros envelhecem comigo aqui na minha biblioteca. Juntos e distantes ao mesmo tempo. Que histórias emocionantes deixam de me contar. Que personagens inusitados, enlouquecidos, vibrantes ou simplesmente medíocres deixam de se mostrar por inteiro.
Tenho um afeto enorme por esses volumes que se acumulam onde estou agora. Olho para eles: relembro onde comprei alguns, ignoro como outros vieram parar nas prateleiras. Há ainda os que foram presentes de pessoas queridas, com bonitas dedicatórias. Um deles, presente de uma tia e que me revelou um universo, me foi dado quando tinha 11 anos: A Máquina do Tempo, de H.G. Wells. Uns são ainda mais antigos.
Estou lendo um romance de Saul Bellow. É quase uma conversa com o personagem principal, Artur Sammler, septuagenário cego de um olho, sobrevivente de um massacre num campo de concentração nazista. Gosto de saber das suas idiossincrasias, da sua perplexidade diante de uma metrópole que não compreende, do sentimento de inadequação em relação ao mundo em que vive.
Sammler tornou-se uma espécie de amigo que não pretendo esquecer. Como são amigos Mathieu Delarue, Santiago Zavalita, Sal Paradise, Jake Barnes, Thomas Hudson, Ivan Karamazov, Jay Gatsby, Sueco Levov, Florentino Ariza e Fermina Daza, Horácio e a Maga, Riobaldo e Diadorim. Nunca vou esquecer deles, nem de tantos outros que me levaram ao delírio silencioso.
Este ano pretendo arrumar tempo para me apresentar a Stephen Dedalus, Leopold Bloom e Molly Bloom. Eles aguardam esse encontro há duas décadas, desde quando comprei a primeira das duas edições de Ulisses que tenho em casa. Foi num sebo em Fortaleza, que frequentei nos poucos meses em que morei na cidade. Ainda existe?
Muitas das livrarias onde fui, uma ou muitas vezes, fecharam as portas nos últimos anos. Lugares onde eu me sentia em paz, manuseando volumes, pescando trechos, ensaiando flertes com personagens que depois virariam uma espécie de namorados, tal a paixão que despertavam. Talvez, como os livros e as livrarias, eu também seja um animal em extinção. Um ser exótico e ensimesmado, que se alimenta de papel como se fosse uma traça gigante.
Fonte: Agência Brasil