Evandro Rodrigues, autor de ‘Baianidade Nagô’, em foto atual com camiseta que traz frase da canção. Jornais de 92 também citavam (Fotos: Arquivo CORREIO e Divulgação) |
Já pintou o verão, calor no coração, mas pelo segundo ano seguido a festa não vai nem começar em Salvador. Ao menos não de forma oficial, como nos tempos pré-pandemia e pré-conflito Rússia x Ucrânia. Não fosse tanto contratempo, ‘Baianidade Nagô’ completaria, este ano, 30 carnavais fazendo a paz vencer a guerra.
Enquanto viver não é só festejar, iniciamos uma missão de resgate do Carnaval de 30 anos atrás, que além da grande composição de Evandro Rodrigues, gravada na época pela Banda Mel, também teve a oficialização da Barra-Ondina como um circuito regular da folia.
Assim como nos parágrafos que passaram, o Correio da Bahia de 4 de março de 1992, quarta-feira de cinzas, usou frases marcantes de ‘Baianidade Nagô’ para tentar cativar o leitor. ‘A paz vence a guerra’ foi a manchete e ‘Que essa fantasia seja eterna’ foi o título numa página interna – ao que tudo indica, as duas únicas vezes que os títulos foram usados sem soarem clichês. Tudo era novidade, inclusive para Evandro Rodrigues, então com 20 aninhos.
“Essa capa é maravilhosa e histórica na minha vida. Um sonho estampado nos jornais”, nos disse o autor essa semana.
A canção aparece ainda no título de uma terceira reportagem: “Madalena, ‘vumbora’ amar essa baianidade nagô”, que fala sobre a disputa de três canções pelo título de Música do Carnaval. As concorrentes ‘Madalena (entra em beco sai em beco)’ e ‘Vumbora Amar’ também tinham sido muito executadas, e a data da publicação ainda não guardava distância histórica suficiente para consagrar ‘Baianidade Nagô’ como vencedora inconteste.
Mas o jovem autor, claro, curtiu a fama de camarote, ou melhor, de dentro do bloco. “Foi o melhor Carnaval da minha vida! A Banda Mel nos presenteou com abadás [ainda era mortalha] e lá fomos nós, curtir. Num determinado momento, Jailton Dantas (baixista e diretor da banda) me viu e me convidou para subir no trio. Fiquei em êxtase quando meu ídolo, Robson Morais, cantor da Banda Mel, puxou ‘Baianidade Nagô’ na entrada do Campo Grande. Foi uma explosão de alegria, lágrimas”, relembra.
Novo circuito oficial
Embora ainda não fosse circuito oficial, a Barra já era um espaço em que se curtia o Carnaval e, segundo Evandro, foi por isso que ele lembrou de citar o local em sua obra-prima.
“Sim, a Barra já despontava como um novo circuito e ao fazer ‘Baianidade Nagô’, tive o cuidado de enaltecer essa realidade com o trecho ‘Na Barra, o Farol a brilhar’. Sou folião e fã do circuito do Campo Grande, mas adoro a Barra”, complementa.
Até 1992, a Barra era um circuito alternativo, como explica o diretor do bloco Camaleão, Joaquim Nery. “Era chamado de Carnaval alternativo, circuito alternativo porque eram em dias alternativos (quinta, sexta e sábado), e num circuito que não era oficial, também uma alternativa à Avenida. Só que Daniela Mercury desceu, justamente, no domingo, segunda e terça, e mudou tudo”, reconstitui, citando um movimento que demorou mais de dez anos para acontecer, mas que começou com o Camaleão.
Em 1981, dois anos depois da fundação do bloco, a turma promoveu uma apresentação no sábado de Carnaval para testar o trio elétrico, que tocaria no domingo no Centro. Em 1992, Nery já celebrava esse pioneirismo. “Hoje o Carnaval da Barra é um dos pontos fortes da folia. O Camaleão se orgulha de ter descoberto este novo espaço”, comentava na reportagem ‘Camaleão vai agitar de Ondina até Barra’, que falava do bloco, já com o Chicletão, fazendo um desfile no novo circuito – no sentido contrário ao atual, como se lê.
Crise econômica
O novo circuito motivou mudanças no comportamento dos foliões, mas também de quem trabalhava na festa, como a ambulante Maria José Silva Pereira, a ‘Loira’. “Eu costumava armar uma barraca na Piedade, mas é muito pesado lidar com bebida, carregar gelo, e a Barra tem menos movimento”, contou ela, que passou a vender batata frita na esquina da Afonso Celso.
Enquanto isso, a ambulante Ranúzia Souza comemorava o aumento do fluxo da Barra-Ondina, que só em 1997 passaria a se chamar Circuito Dodô. “Agora parece que eles se lembraram da Barra, botaram mais trios, ornamentação. Acho que o movimento vai ser bem melhor”, torcia.
Mas passados os primeiros dias de festa, os barraqueiros estavam decepcionados. “O pessoal tá sem dinheiro mesmo e quando toma, é só uma cerveja ou duas”, reclamava Maria José dos Santos, na Barra.
Um dado da realidade naquele ano também foi citado num dos textos: “muitos foliões preferiram trazer a bebida de casa e era comum encontrar o infalível cantil pendurado no pescoço”.
Crise para quem?
A pindaíba, no entanto, não era para todos. Mesmo sem os camarotes que dominam a Ondina, atualmente, o bairro já tinha vocação para atrair os mais endinheirados, como ocorre hoje. A reportagem ‘Ondina atrai os foliões da classe média alta’ conta que em 92 o espaço fora ocupado, principalmente, por turistas hospedados em hotéis do bairro, entre eles o Othon Palace, que fechou as portas em 2018.
Foi nele, inclusive, que aconteceu o 13º Baile da Oxum, que em 92 homenageou a apresentadora Marília Gabriela, e teve Luiza Erundina, então prefeita de São Paulo, como convidada. No line-up da festa, nomes como Gera Samba (hoje É o Tchan), quando surgiu, ainda sem os dançarinos (estes só aparecem em 1995), e Diumbanda, que depois estourou com a Companhia do Pagode.
Na quarta de cinzas, o engenheiro João Carlos Batista afirmava, numa das matérias, que “o bom resultado de público do Carnaval de Ondina confirmou que a tendência é mesmo trazer a folia para a orla”. Por sinal, ainda em 92, chegou a ter plebiscito sobre a proposta de levar parte da festa para o Jardim de Alah. A ideia não vingou.
Foliões com chapéu e mamãe-sacode na Praça Castro Alves, no Carnaval de 1992 (Foto: Luiz Hermano/Arquivo CORREIO) |
Encontro de trios com volta da Caetanave
Na edição especial de quarta (o jornal não saía nos dias da festa oficial), o texto de abertura da edição falava, claro, da “grande fantasia dos foliões”, que era o sonho de paz. “Desde que os primeiros batuques e trios detonaram a folia que milhares de pessoas repetem o refrão extraído de uma das músicas mais marcadas na festa – eu queria que essa fantasia fosse eterna; quem sabe um dia a paz vence a guerra! E venceu”, dizia a chamada, que destacava também o baixo índice de violência em 92.
Caetanave voltava à folia, em 92, para homenagear Orlando Campos, construtor de trios elétricos (Foto: Luiz Hermano/Arquivo CORREIO) |
O destaque também ficou por conta do retorno, após 20 anos, da Caetanave, que derreteu os corações dos mais saudosos no encontro de trios da Praça Castro Alves. A ideia da volta foi de Orlandinho, filho de Orlando Campos (lendário construtor de trios elétricos, falecido em 2018), como uma homenagem ao pai e para promover um encontro de gerações. “Muita gente lembrava, entusiasmada, os velhos carnavais”, citava a matéria, que também lamentou a ausência de Caetano Veloso.
“O momento histórico do Carnaval92 foi o encontro da Caetanave com o inventor do trio elétrico, Osmar Macedo, que foi homenageado com a execução do Frevo Ordinário (abertura oficial dos velhos carnavais). A emoção tomou conta da praça quando começaram a ser tocados antigos sucessos como Pombo Correio e Festa do Interior. A multidão balançou o chão da praça e os saudosistas foram ao delírio. ‘Isso é história viva do nosso Carnaval’, gritava, emocionada, a foliã Leda da Silva Prata”, cita texto.
O ouro da festa estava entregue, com direito a Hino ao Senhor do Bonfim para encerrar os festejos que, oxalá, seja também um apelo de paz neste Carnaval sombrio de 2022.
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Fonte: Agência Brasil