A pandemia de covid no auge. Trabalho em dobro e uma rotina presencial de segunda a sexta-feira, das 7h às 16h, em uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA). Até que a descoberta da gravidez fez com que a farmacêutica Mariana Machado, 42 anos, ressignificasse o sentido de estar ali, batendo ponto, na emergência, diariamente. Claro que existia o medo de perder a “segurança” de uma carteira assinada mas, também, o que ninguém sabia: Mariana já estava no “modo automático” há algum tempo e não se sentia feliz.
“Trabalhava nessa unidade há cinco anos, desde o primeiro dia de funcionamento e com dedicação total. Era responsável por toda a compra e aquisição dos medicamentos, fazia acompanhamento dos tratamentos dos pacientes e treinava a equipe, além das questões administrativas. Precisei fazer uma escolha: a estabilidade da CLT ou trabalhar com o que me desse realmente prazer. E a escolha foi feita”.
Assim, Mariana foi com a cara e a coragem se dedicar integralmente a Lilium, marca de vestuário para profissionais de saúde criada por ela.
“A pandemia foi transformadora para mim. Deu medo porque ninguém quer perder a segurança de um trabalho certo em um período de tantas incertezas, porém, empreender me dava mais prazer”, conta.
Em um cenário onde a Bahia voltou a ter a maior taxa de desocupação do país – no 1º trimestre de 2022 – e que 1,250 milhão de baianos estavam em busca de trabalho, o fenômeno contrário passou a chamar atenção: o movimento crescente de demissões voluntárias, ou seja, aquela em que o trabalhador pede para sair.
Segundo dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), em março de 2019 foram 6.350 mil demissões voluntárias registradas na Bahia. No mesmo período deste ano, o volume de profissionais que pediram demissão mais que dobrou chegando a 12.990, aumento de 104,5%. O número é superior ao volume de desligamentos a pedido no país, que apresentou um crescimento de 93%.
“Os pedidos de demissões no Brasil aumentaram de forma consistente. As pessoas que se demitem voluntariamente possuem um perfil bem definido, não apenas social e economicamente falando, mas também a nível de qualificação e autoconhecimento. No momento de pandemia, muitos trabalhadores passaram a colocar em xeque o sentido do trabalho, o valor da vida e do seu fazer profissional”, destaca a psicóloga doutoranda em Psicologia do Trabalho e das Organizações e diretora-executiva da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-BA), Camila Leão.
No caso do designer Iago Pereira, 29 anos, ele decidiu ir viver de ‘jobs’ e foi. Quando se viu sobrecarregado no trabalho com um salário muito distante da quantidade de demandas que surgiam, algo mudou. Pedir as contas foi um alívio. “Eu aprendi a sair da minha zona de ‘desconforto’. A gente precisa aprender a se priorizar. Coisas simples: me alimentar direito ao invés de ficar resolvendo 200 demandas e esquecer de almoçar. Impor que a hora do exercício é sagrada e não vai ter mensagem de trabalho no WhatsApp que impeça. Isso tudo passou a ser muito mais importante para mim”.
A diretora-executiva da ABRH-BA, Camila Leão, pontua que são os mais jovens que renunciam aos empregos com mais facilidade. “É uma característica muito forte de perfil dessas novas gerações, que buscam encontrar sentido no que fazem, equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Esse novo entendimento do trabalho se desprende da noção de emprego que era predominante nas gerações anteriores”.
Diante de um mundo em constante mudança, não só as empresas apresentam novas exigências de competências requeridas, mas também os trabalhadores expressam outras necessidades. “Aprendizagem contínua, lideranças mais humanizadas, voz nas organizações, diversidade, respeito, flexibilidade no formato de trabalho, possibilidades de desenvolvimento são algumas dessas necessidades. E isso requer uma grande reformulação nas práticas antigas de Recursos Humanos”, complementa a especialista.
Prioridades
Para a professora de Desenvolvimento de Carreiras e Pessoas nos cursos de MBA da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Anna Cherubina, a pandemia impactou tanto o mundo do trabalho que dificilmente as pessoas ainda são as mesmas, assim como suas visões, perspectivas e expectativas.
“Esses profissionais renunciam porque cansam do mais do mesmo e buscam uma remuneração com mais conforto e rentabilidade. São pessoas que entenderam que o trabalho não pode se sobrepor à sua vida pessoal, que se sentem manipuladas por empresas e gestores pré-históricos. Vivemos a era da cooperação, do conhecimento acelerado e de mudanças de valores. O trabalho passou a ser complementar, mesmo que importante e essencial à vida de todos”.
Anna ressalta, no entanto, que antes de decidir pedir demissão é necessário avaliar alguns aspectos para não cair na frustração.
“É importante que o profissional responda algumas perguntas. Para onde vou? O que vou fazer? Que recursos financeiros disponho? Quais as minhas estratégias para o processo de transição?”, provoca.
Vinte anos trabalhando em um dos maiores bancos do país renderam experiência para a administradora Adriana Borges, 41 anos, mas também, lesões físicas por esforço repetitivo, LER, epicondilite nos cotovelos, problemas nos ombros e cervical, além de duas cirurgias nas mãos. Na pandemia, ela ainda foi diagnosticada com depressão, ansiedade generalizada e Síndrome de Burnout . “A minha necessidade pessoal de curar o meu emocional e ter qualidade de vida me fizeram tomar a decisão de sair. Hoje, sou terapeuta integrativa e, além disso, voltei para a faculdade e estou cursando psicologia”.
O ambiente era o de uma rotina exaustiva, muitas metas para bater e muitos outros bancários adoecidos, como lembra Adriana.
“Presenciar o sofrimento dos meus colegas foi o gatilho que me levou a começar a traçar uma nova forma de trabalho. Uma carreira que me possibilitasse trabalhar online, me abrir para um novo horizonte. Vi que era possível, sim, ter e seguir com uma nova profissão”.
Mas será que deveríamos trabalhar tanto? O psicólogo organizacional e professor de Gestão com Pessoas da Especialização em Empreendedorismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Lucas Freire, destaca que o que mais chama atenção nessa onda de demissões voluntárias é que, apesar de as razões serem diversas, todas convergem na ideia de viver com mais qualidade. Freire também é autor do livro Playfulness! Trilhas para uma vida resiliente e criativa (DVS Editora, 2022, R$ 89,90).
“Observamos motivações complexas como a produção de sentido, fugir de ambientes tóxicos e abusos psicológicos e até razões mais simples e objetivas como a distância do trabalho e pacote de benefícios. Isso vem de uma geração que nos convida a entender que trabalhar não precisa ser fonte de sofrimento para além do esforço”.
Se libertar das pressões e reencontrar a alegria profissional, entretanto, ainda apresenta muitos obstáculos para a maioria dos profissionais.
“Convivemos com um desemprego estrutural que, muitas vezes, é utilizado como mecanismo de retenção através de ameaças e objetificação das pessoas no trabalho. Em muitas organizações, as pessoas são tratadas como ‘peças fáceis’ de serem substituídas ou tendo que suportar ambientes tóxicos para manter o emprego”, comenta Freire.
Um novo sentido
Abrir mão do emprego vai exigir entender seu tempo e propósito. Foi o que fez a publicitária Naianne Ministro, 30 anos. A primeira vez em que ela teve covid-19 foi um período que ela parou e repensou muita coisa. “Achei que poderia morrer a qualquer instante sem ter realizado tudo que planejei. A partir daí me despertou que eu precisaria mudar, fazer acontecer alguns planos, arriscar. Sou grata por onde estive, mas decidi sair. Era a minha hora”.
Naianne se associou a uma agência de marketing digital. A chegada da Echosis Paralela, em Salvador, a transformou em empreendedora. “Se organizar, é possível ter pequenas experiências de qualidade de vida durante nossa jornada de trabalho, não depositando toda a experiência no período de férias”.
De acordo com a especialista em desenvolvimento humano e autora do livro Líder Protagonista – Uma Nova Atitude na Agilidade (Editora Gente 2022, R$ 49,90), Susanne Andrade, essa recusa significa que os profissionais não querem mais se submeter a qualquer condição de trabalho.
A aceleração da transformação digital, o home office, a gestão de maneira remota e com maior autonomia são algumas das principais mudanças que a pandemia causou no mercado de trabalho nesses últimos anos. E isso não tem volta.
“Aconteceu, na verdade, uma grande tomada de consciência de quem está atrás do crachá. Já se foi o tempo em que o profissional era escolhido. Agora, o líder protagonista é o próprio profissional, ele escolhe como e onde quer trabalhar”.
Hashtag #demissaochallenge
Assim, não é de se admirar que muita gente esteja postando o momento da demissão em redes sociais como o TikTok. A hashtag #demissaochallenge virou febre. Em uma busca rápida na plataforma, os conteúdos relacionados ao tema ultrapassavam 150 milhões de visualizações. A professora de Psicologia da Unifacs, Fernanda Machado, explica que o sentimento que vai junto com esse post é o de demonstração de coragem.
“Há um fenômeno de espelhamento que vivenciamos pelas redes socais, inclusive em busca de aprovação, compartilhamos diversos aspectos das nossas vidas através das redes sociais, principalmente de conquistas e, para esse público, não se submeter a qualquer trabalho e buscar sentido e qualidade de vida é uma conquista”.
Já a psicóloga e coordenadora do curso de psicologia do UniRuy, Susy Rocha, reforça a necessidade de as empresas se repensarem também. “A pandemia tornou tudo isso muito claro. O que realmente é importante? Não basta só ter um salário, uma estabilidade. É necessário ter uma motivação. E as empresas precisam estar atentas a isso. Sem dúvida, é o que o movimento de recusa tem a dizer ao mercado de trabalho”, completa.
PEDIDOS DE DEMISSÃO BATEM RECORDE NO PAÍS
No Brasil, os pedidos de demissão bateram recorde em março e são 1 de cada 3 desligamentos, conforme aponta um levantamento feito pela LCA Consultores. A pesquisa, que levou em conta os dados do (Caged), apontou que dos 1.816.882 desligamentos registrados em março, 603.136 foram voluntários – o equivalente a 33,2% do total. Esse é o maior número de demissões a pedido do trabalhador em um único mês desde janeiro de 2020, início da série histórica do Caged com a metodologia atual de contagem de vagas.
A diretora Executiva da Associação Brasileira de Recursos Humanos (ABRH-BA), Camila Leão, explica que o movimento está concentrado nos profissionais mais qualificados, o que justifica a recusa mesmo diante de um cenário de altas taxas de desemprego. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no primeiro trimestre de 2022, a taxa de desocupação nacional ficou em 11,1%, com 11,9 milhões de desocupados.
“A recusa reforça a necessidade de se pensar, construir e operacionalizar Políticas de Gestão de Pessoas mais humanizadas, focadas nessas necessidades de aprendizagem contínua, valorização, reconhecimento, escuta, abertura. Os talentos, aqueles que têm uma entrega acima da média, manifestam essas novas necessidades, fazendo com que as empresas tenham que se ajustar a esses novos parâmetros”.
O fenômeno não atinge somente o Brasil, mas reflete um movimento global. A grande renúncia tem acontecido também em outros países como os Estados Unidos, China, Índia, Reino Unido, Alemanha e França. São profissionais que passaram a buscar por outras empresas que estejam mais alinhadas com suas habilidades ou propósito de vida, que ofereçam melhores benefícios e remunerações, flexibilidade e possibilidades de desenvolvimento. Mas existem também aqueles que se voltam a empreender um negócio próprio, trabalhos informais e autônomos.
“Com a pandemia, o mundo percebeu um movimento de reavaliação sobre o sentido da vida. O momento difícil, de perdas e incertezas, se refletiu em autoconhecimento, fazendo com que cada um de nós se voltasse a seu mundo interior e realizasse alguns questionamentos sobre o seu propósito”, analisa.
Fonte: Agência Brasil