É possível que você não acredite, mas ando pensando seriamente em recomeçar a vida do zero. O zero é um bom lugar, dizem. Li um poema de Waly Salomão há muito tempo sobre o zero. Redondo, quentinho e sempre se pode ir de lá até o 1. Há também outra leitura, essa bem mais recente, um poema de Adriana Lisboa.
Tem livros que abro devagar. E é como se afastasse um pouco as cortinas para espiar lá fora. Nem sempre há um jardim, muitas vezes, só a varanda do prédio em frente. Nas tardes de maio, aparecem duas ou três crianças que estudam pela manhã. E elas gritam alegremente umas com as outras enquanto fingem brigar.
O poema de Adriana Lisboa fala sobre o movimento de soltar as coisas. Desapegar. E eu amo o modo como ela situa o que há no centro. Aqui, por exemplo, sinto que finalmente me liberto da perfeição. Escrevo repetindo as palavras ao longo do texto sem pensar. Me entrego livremente ao erro da repetição.
Recomeçar do zero implica numa organização mínima ou é apenas caos? Faço esse questionamento enquanto decido seguir adiante de outro modo. Não pergunte, ainda não sei qual. O que parece claro é que andei dando voltas no escuro. Feito o eu lírico (ainda se usa isso?) do poema de Fábian Casas que tanto gosto.
Luzes apagadas, vozes sussurrando atrás de portas fechadas, o lixo nas mãos. Acordo para trabalhar antes do horário. Há sempre algo a fazer ao iniciar mais um dia de trabalho. Bebo café forte bem cedo, contemplando da varanda o clichê da cidade que desperta. As casas de tijolos aparentes em meio ao ladrilho dos prédios.
Agora, saio para a rua diariamente, estranho ver as pessoas de cara limpa em todo canto depois de dois anos de distanciamento. Observo os seus queixos, mais que suas bocas se movendo. Logo vamos nos reacostumar a enxergar outra vez os rostos de outros seres humanos, a máscara subjetiva, o mapa das expressões.
Mas, do que eu falava mesmo?
Ah, sim, sobre a decisão de recomeçar a vida do zero. O desafio do zero, deslocar o centro. O menino magrelo do prédio retomou os exercícios no crossfit. Subimos juntos no elevador. E eu temo que ele me pergunte algo inteligente sobre o Destino. No hay banda e nem respostas. Oh, Its Ok, como diz a música de Nightbirde.
Fonte: Agência Brasil