Duas populações de fragatas criticamente ameaçadas de extinção vivem hoje no longínquo arquipélago de Trindade e Martin Vaz, localizado no meio do Oceano Atlântico, a 1.100 quilômetros de distância da costa continental brasileira. Para salvar essas aves, um projeto de restauração vegetal vem sendo desenvolvido na ilha principal (Trindade) desde 2018.
Essa parte distante do território brasileiro, no litoral da Região Sudeste, é refúgio de algumas espécies de aves, entre elas, a fragata-de-Trindade (Fregata trinitatis), espécie endêmica da ilha, ou seja, só existe ali.
A ilha também é lar da fragata-grande (Fregata minor nicolli), subespécie que só é encontrada em Trindade. As duas populações são compostas por poucas dezenas de indivíduos e, como não vivem em nenhum outro lugar do mundo, esses animais são os últimos representantes de sua linhagem.
Preservar espécies que vivem num lugar tão restrito quanto Trindade, que tem apenas 10 km2 (120 vezes menor que a cidade do Rio de Janeiro), já seria um desafio. A dificuldade é ainda maior quando se descobre que essas aves fazem seus ninhos em árvores e que, na ilha, a principal espécie arbórea, Colubrina glandulosa, foi extinta na década de 1960, tendo sido reintroduzida apenas 30 anos depois.
Devastação
Descoberta no início do século XVI, por João da Nova, a ilha era coberta por uma densa floresta tropical em mais de 80% do território. Mas depois de 500 anos de tentativas de colonização e inserção de animais exóticos (ou seja, trazidos de fora), como cabras e porcos, a vegetação original de Trindade foi amplamente destruída.
Atualmente, com exceção de uma floresta de samambaias-gigantes, da espécie Cyathea delgadii, e de pequenas populações arbóreas, Trindade é coberta principalmente por gramíneas e vegetação de pequeno porte. Sem as árvores para nidificar, as fragatas passaram a improvisar e começaram a colocar seus ovos no próprio chão.
Isso, é claro, provocou impacto na reprodução das aves e, consequentemente, no tamanho das populações. A ideia, portanto, é tentar restaurar a vegetação nativa, para que o ambiente original de nidificação seja reconstituído e as aves possam se sentir mais à vontade para se reproduzir a aumentar sua população.
Reflorestamento
Essa é a proposta do Programa Reter-Trindade, projeto de recomposição do ecossistema da ilha oceânica, em uma parceria do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) com a Fundação Grupo Boticário, a Marinha, o Programa de Pesquisas Científicas na Ilha da Trindade (Protrindade) e diversas universidades.
A iniciativa começou em 2018, mas teve que ser praticamente paralisada por dois anos por causa da pandemia de covid-19.
O programa só pôde ser retomado em março deste ano, já que a pandemia provocou a suspensão do envio de cientistas para Trindade. O primeiro pesquisador do Reter-Trindade enviado à ilha depois desse período, Bruno Linhares, passou algumas semanas no arquipélago e retornou ao continente no último fim de semana.
“A notícia [repassada por Linhares] é que as fragatas ainda não foram extintas. Temos fotos recentes delas”, comemora o coordenador do Reter-Trindade, Leandro Bugoni, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande (Furg).
Desafios
Reflorestar a ilha, no entanto, é um processo bem complexo. Sem a vegetação natural, grande parte do solo fértil foi perdido em processos de erosão. A distância em relação ao continente também dificulta o transporte de mudas. Além disso, a transposição de plantas de outras áreas para a ilha tem o potencial de gerar ainda mais desequilíbrio, com a inserção, por exemplo, de espécies exóticas.
“A gente tem lá uma espécie de lagartixa, dessas que a gente vê nas nossas casas (Hemidactylus mabouia) que foi introduzida junto com as mudas. Ela, provavelmente, estava nas caixas ou tinha algum ovo enterrado no solo das mudas e aí foi introduzida lá. Hoje é quase impossível a gente remover esse lagartinho”, conta Bugoni.
A ideia de criar um viveiro de mudas na ilha também esbarra em outro problema. Com uma pequena população flutuante de cientistas e militares, não existe ninguém específico para cuidar das plantas em crescimento.
A solução é tentar se aproveitar das pequenas populações nativas remanescentes e transplantar indivíduos dessas espécies em pontos chave da ilha, criando bolsões de vegetação que facilitarão a regeneração natural da mata.
Segundo Bugoni, a eliminação, cerca de 20 anos atrás, das cabras que viviam há décadas na ilha já provocou efeitos positivos com a recomposição natural da vegetação em vários pontos de Trindade.
“Se a gente der um empurrãozinho, isso pode ser muito útil. A intenção é remover plantas onde elas estão muito densas e criar núcleos de árvores e arbustos em outras áreas da ilha, como se fosse um auxílio na recomposição da ilha, usando as próprias plântulas que ocorrem lá”, afirma.
Mas mesmo isso se mostra difícil, uma vez que um caranguejo quase onipresente na ilha, o Johngarthia langostoma, se alimenta das sementes e espécimes vegetais juvenis.
Além da dispersão de espécies nativas pela ilha, os pesquisadores também trabalham na eliminação de plantas exóticas, que prejudicam o desenvolvimento da vegetação local, como a Guilandina bonduc.
“Ela [a Guilandina] está causando um estrago muito grande lá e está se espalhando. Ela resseca toda a terra ao redor e impede que outras plantas se estabeleçam. Ela foi introduzida de alguma maneira e está tomando conta de algumas áreas”.
Longo caminho
Enquanto as árvores não se espalham pela ilha, processo que pode levar anos mesmo com a ajuda humana, os pesquisadores buscam atrair as fragatas com ninhos artificiais em postes que imitam árvores, para evitar que se repita o que aconteceu com o atobá-de-pé-vermelho (Sula sula), que parou de se reproduzir na ilha.
Para garantir um maior grau de sucesso, os pesquisadores também planejam instalar aparelhos sonoros que emitem a vocalização de aves nos locais de ninhos e até recorrer a simulações de atividades pesqueiras nas águas do entorno, que costumam atrair fragatas em busca de alimento. “Seria um teatrinho para elas serem atraídas e a distribuição dos peixes, para que elas tenham um estímulo adicional para chegarem nos locais dos ninhos”.
Segundo Bugoni, o Reter-Trindade, que terminaria em 2022, foi prorrogado por mais um ano, devido à paralisação ocorrida na pandemia.
“A gente não vai conseguir recuperar o tempo perdido na sua totalidade. A meta, de curto prazo, é que a gente tenha o estabelecimento da colônia artificial das fragatas. Mas a gente deve ter uma continuidade [das ações] e, pensando em longo prazo, o que a gente quer é que o número de fragatas aumente para que a população não seja extinta. Mas a sustentabilidade da reprodução só vai acontecer quando a gente tiver árvores e que elas passem a utilizar as árvores nativas”, explica.
Ele destaca, entretanto, que não é da noite para o dia que se reconstitui uma floresta, ainda mais na ilha de Trindade, onde vários fatores dificultam esse trabalho. “A gente tem um longo caminho para ter uma sustentabilidade das populações de fragata associada à recomposição da vegetação na ilha”, finaliza o pesquisador.
Fonte: Agência Brasil