Na estreita Rua Zuleide Lopes, no bairro do Doron, em Salvador, fica o Conjunto Habitacional 27 de Abril. As quatro torres, entregues em 2012, têm 80 apartamentos e uma fachada bastante comum, não fosse uma peculiaridade: todas as proprietárias dos imóveis são trabalhadoras domésticas, mulheres que, durante décadas, atuaram em casas de família, muitas vezes, sem receber o básico dos direitos trabalhistas. Esta sexta-feira (22) é o Dia Internacional do Trabalho Doméstico, e a Bahia tem 500 mil dessas profissionais.
Os imóveis têm 40 m² e ficam em uma região central do bairro, cercado por pequenos comércios e outras moradias. Quando começou a trabalhar como empregada doméstica em Salvador, Maria do Carmo de Jesus, 64 anos, tinha apenas 10 anos, oito irmãos que dependiam da ajuda dela para sobreviver na zona rural de Amargosa e nenhum documento ou estudo. O muro que circunda o condomínio não consegue esconder as feridas do passado.
“A pessoa que me trouxe para Salvador disse para meus pais que eu ajudaria a tomar conta dos filhos dela, brincando com as crianças, e que teria casa, comida, roupa e estudo. Nada disso aconteceu. Eu trabalhava todos os dias, lavando, passando e cozinhando. Ela me dava o resto que sobrava dos pratos para comer, não permitia que eu estudasse e eu não recebia nada pelo trabalho”, contou.
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Maria do Carmo é uma das moradoras (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
Como não tinha altura suficiente para alcançar o fogão e o varal, Do Carmo usava um banquinho. Foram quase 3 anos nessa rotina, até que a família, preocupada com a falta de notícias da menina, veio até Salvador e conseguiu resgatar a garota. “Fui morar com uma tia, que também era empregada doméstica, e fui trocando de casas até conseguir assinar a carteira e depois me aposentar”, contou.
Um dia, enquanto fazia as tarefas na casa da patroa, ela ouviu no rádio que um grupo de empregadas domésticas estava fazendo uma reunião em uma escola para discutir os direitos da categoria. Correu até o local e conheceu o grupo que, mais tarde, fundaria a Associação e, depois, o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos no Estado da Bahia (Sindoméstico). Foi esse grupo que, em 2012, conseguiu a entrega do condomínio.
Rotina
Os imóveis são simples, têm dois quartos, sala, cozinha e banheiro social. Cada torre foi batizada com o nome de uma trabalhadora doméstica que atuou em defesa da categoria, e a maioria das proprietárias ainda atua na área. Em setembro, fará dez anos que o condomínio, construído através de uma parceria entre os governos estadual e federal, foi entregue. O passar do tempo está estampado na fachada. Moradores contaram que o local precisa de pintura e reformas, mas que o dinheiro está curto.
Maria José Santana, 50 anos, foi a primeira síndica do Conjunto Habitacional 27 de Abril, que tem esse nome em referência ao Dia Nacional dos Trabalhadores Domésticos. Ela conta que os primeiros meses após a entrega foram de luta.
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Maria José foi a primeira síndica do Conjunto Habitacional (Foto: Paula Fróes/CORREIO) |
“O primeiro desafio foi conseguir a construção do muro. O espaço era aberto, qualquer pessoa entrava e tivemos casos de furtos e roubos. Isso deu a maior confusão com outros moradores do bairro que não queriam o muro, fui até ameaçada de morte, mas depois de um mês e meio, algumas vezes dormindo na porta da Secretaria para cobrar, o muro foi construído. Isso deu mais tranquilidade”, disse.
De lá pra cá, foram poucas as intervenções. Ela contou que, há cerca de três meses, engenheiros da Defesa Civil visitaram o Conjunto para avaliar as rachaduras nos prédios, e a situação está sendo analisada pelos moradores. “São 80 apartamentos, mas, durante a pandemia, aumentou o número de famílias, porque muitos filhos e outros familiares que moravam longe vieram viver com os pais. Na última contagem, eram 110 [famílias]”, disse.
A diarista Deise dos Anjos, 43, contou que morava de aluguel antes de receber o apartamento. “Foi uma benção. Ele é arrumadinho, fica perto de tudo e a morada é tranquila”, contou, enquanto conversava animada com as amigas.
Segundo o Sindicato, são 500 mil trabalhadores domésticos na Bahia, sendo 150 mil em Salvador. A categoria ainda enfrenta problemas para conseguir garantir os direitos básicos. As queixas mais recorrentes tratam de patrões que se recusam a assinar a carteira de trabalho, que pagam salários abaixo do mínimo, desrespeitam a jornada de trabalho e sobre acumulo de funções. A entidade recebe denúncias também de assédio moral e sexual, e de trabalhadoras que são impedidas pelos patrões de visitar a própria família.
Veja quais os direitos trabalhistas das empregadas domésticas:
Os direitos dos trabalhadores domésticos foram assegurados na Constituição de 1988 e, mais tarde, na Lei Complementar nº 150/2015. A diretora geral da Escola Superior de Advocacia (ESA) e conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-BA), Cínzia Barreto, esclareceu algumas questões sobre os direitos da categoria. Confira:
O que configura um trabalhador doméstico?
Existem duas categorias. O trabalhador doméstico informal, comumente chamado de diarista, é aquele que realiza atividade trabalhista em até dois dias na semana. Se o trabalhador presta atividade por mais de dois dias semanais para o mesmo empregador, ele é um trabalhador doméstico empregado e tem direto a carteira assinada, férias remuneradas, 13º salário, descanso semanal e todos os outros direitos previstos em lei.
Alguns patrões querem trocar a carteira assinada por contratos de Microempreendedor Individual (MEI). Isso é legal?
Isso está dentro de um movimento maior que é a ‘uberização’ do trabalho, uma cilada, porque precariza o serviço e retira do trabalhador direitos já assegurados. Se o emprego é de carteira assinada e há uma mudança na forma contratual que não é benéfica para o trabalhador, mesmo que consentida, ela é considerada nula. Esse tipo de mudança fere o princípio de proteção do trabalhador.
É muito difícil comprovar os abusos como desrespeito à jornada de trabalho e acúmulo de funções?
Alguns casos são difíceis, mas não é impossível. Podem ser usadas como prova imagens de câmeras do prédio que mostram a rotina do trabalhador, o depoimento de outros funcionários e de vizinhos, da pessoa que pega o ônibus todo dia naquele mesmo horário com você, e-mails, mensagens de celular, enfim, é preciso analisar cada caso.
O que é assédio moral e assédio sexual nesse ambiente de trabalho?
São duas coisas diferentes. Assédio moral é praticado de forma continua, não um rompante momentâneo, e pode ser o isolamento do trabalhador do convívio com a família, brincadeiras de mau gosto, revista de bolsa, horário injustificado e outras ações que provoquem vergonha, humilhação e fira a dignidade. Assédio sexual é a aproximação física, intimidação e insinuações, e tem que ser denunciado à polícia.
Quais são as penalidades para quem desrespeita os direitos trabalhistas dos empregados domésticos?
As mesmas penalidades para quem desrespeita os direitos dos outros trabalhadores. Se, por exemplo, a carteira não foi assinada ou o salário que está sendo pago está abaixo do mínimo, ele será intimado pela Justiça do Trabalho e terá que pagar o valor devido, com correção monetária, e pode estar sujeito à multa. Então, quem foi prejudicado pode e deve procurar a justiça trabalhista.
Fonte: Agência Brasil