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Caso Geovane:  PMs acusados de crime voltaram às ruas

Um dos homens mais corajosos do mundo, Jurandy Silva de Santana, 54 anos, teve um encontro inesperado no bairro do Rio Vermelho. Ele deu de cara com um dos setes policiais militares que vão à júri popular depois que ele mesmo descobriu as imagens que registraram a abordagem de PMs ao seu filho, Geovane Mascarenhas, decapitado aos 22 anos dentro de um batalhão. “Ele estava com outros policias ao lado de duas viaturas. Todos estavam fardados. Quando me viu, baixou a cabeça”, recorda Jurandy. O Caso Geovane completou oito anos no último dia 2 e além da incerteza na conclusão do processo que tramita na esfera militar, há uma única certeza:  outros quatro réus trabalham normalmente nas ruas de Salvador. 

O relato de Jurandy soma-se à denúncia que chegou ao conhecimento do CORREIO por fontes da própria Secretaria de Segurança Pública (SSP), que pediram para a reportagem não revelar as unidades onde os cincos policiais atuam normalmente no serviço ostensivo. Esse é, justamente,   o meio e forma mais comum de  emprego  da Polícia Militar e  onde o policial é facilmente identificado pela farda, como nas blitze, patrulhamentos e operações. O fato, ainda segundo a fonte da SSP, é que três PMs estão em uma mesma companhia. 

“É um risco para a sociedade. Já tinha escutado comentários anteriormente, mas tive a certeza quando vi esse policial no Rio Vermelho. Eu reconheci ele e ele me reconheceu, tanto que baixou a cabeça e virou em seguida”, comenta Jurandy. Ele e o PM em questão já se cruzaram antes nos corredores da Corregedoria da Polícia Militar, ainda no início das investigações. “Eu não sei o nome dele, mas aquele rosto não esqueço nunca”, enfatiza o pai de Geovane. 

Entre os sete acusados, apenas um policial trabalha, atualmente, no serviço administrativo. O sétimo, o cabo Jesimiel da Silva Resende, 42, foi demitido. A exclusão da corporação, no entanto, não tem relação com o Processo Administrativo Disciplinar (PAD) que apura a morte de Geovane, mas por uma outra investigação interna da Corregedoria da PM. O cabo foi preso em flagrante por roubo, no bairro do Imbuí, em julho de 2018. 

Ação civil
Em fevereiro do ano passado, o Ministério Público da Bahia ajuizou ação civil pública por improbidade administrativa – o ato ilegal ou contrário aos princípios básicos da administração pública, cometido por agente público, no exercício da função –  solicitando à Justiça, em pedido liminar, o afastamento dos policiais militares denunciados pela promotoria pelo homicídio de Geovane e, em decisão definitiva, a perda dos cargos. 

A ação foi baseada exclusivamente na denúncia oferecida contra os PMs e tramita na 7ª Vara da Fazenda Pública de Salvador. O Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) foi procurado, mas  não se manifestou até o fechamento da edição, às 23h. 

Em relação à denúncia de que os policiais envolvidos na morte de Geovane estão atuando no policiamento ostensivo, a Polícia Militar da Bahia enviou  nota, dizendo: “A instituição adota todas as medidas previstas em lei e em regulamentos, sendo que o processo se encontra em estágio de finalização”.

Execução bárbara
A morte de Geovane veio à público após o CORREIO ter tido acesso, com exclusividade, às imagens da abordagem de três policiais militares à vítima, no dia 02 de agosto de 2014, na Calçada, última vez em que ele foi visto com vida. Após ser decapitado dentro da base da Rondas Especiais (Rondesp), no Lobato, Geovane teve  os órgãos genitais , as mãos e as tatuagens arrancados. Seus restos mortais foram cobertos com plástico, carbonizados e deixados em dois pontos distintos de Salvador, para dificultar sua identificação.

Depois das investigações da Polícia Civil, o MP-BA denunciou 11 PMs pelos crimes de homicídio qualificado, roubo e ocultação de cadáver.  Porém, em março de 2018, o Diário da Justiça Eletrônico (DJe) divulgou os nomes de sete deles, que vão à júri popular. Os outros quatro foram inocentados.

Além do então cabo Jesimiel, os policiais que tiveram seus nomes publicados no DJe são: o subtenente Cláudio Bonfim Borges, o sargento Daniel Pereira de Souza Santos; e os soldados Roberto Santos de Oliveira, Alan Moraes Galiza dos Santos e Alex Santos Caetano. 

Já o soldado Jailson Gomes Oliveira irá à júri pelos mesmos crimes, com exceção de ocultação de cadáver.

Recurso negado
Um outro fato novo do caso é que o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (TJ-BA) negou, no dia 19 de julho deste ano, o recurso da defesa dos policiais que pedia que o processo fosse encaminhado às cortes superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF). A decisão foi dada pela 2ª Vice-Presidência, assinada pela desembargadora Márcia Borges Faria. 

Apesar de mais de quatro anos sem uma data definitiva para o julgamento, o TJ-BA nega morosidade e alega que o processo criminal “está no prazo, pois ainda cabe recurso à instância Superior”. Em nota, MP-BA disse também que não houve lentidão processual. “O Ministério Público estadual espera que, após a última decisão do TJ, o processo criminal retorne à primeira instância para designação da data do julgamento popular. O MP não entende que tenha havido ‘descaso’ no trâmite judicial. Trata-se de um processo complexo que, por possuir quantidade expressiva de denunciados, tinha possibilidade de significativo volume de recursos, que acabam retardando o andamento processual, como de fato aconteceu, apesar dos recursos terem sido julgados em tempo hábil”, diz a promotoria. 

No entanto, a Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Bahia (OAB-BA) afirma o contrário. “A gente entende que essa morosidade da justiça é absurda e inclusive afeta o direito constitucional do cidadão de ter uma prestação jurisdicional. As famílias precisam de uma resposta, independente da resposta. O judiciário tem aí autonomia de decidir, mas infelizmente essa é uma realidade que vivenciamos a cada dia na Bahia”, declara o presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-Bahia, Eduardo Rodrigues. 

Cena do vídeo que mostra a abordagem dos policiais; Geovane está de joelhos, no chão, sem capacete

(Foto: Reprodução)

Descaso
O PAD, de Portaria 56D/291-15/15, que apura a morte de Geovane Mascarenhas, já foi concluído. Ou seja, a Corregedoria da PM encerrou suas investigações e desde março deste ano o relatório está no Comando-Geral da PM, no Quartel dos Aflitos, à espera do parecer do comandante-geral, coronel Paulo Coutinho.  
Mas não foi isso que a Polícia Militar informou à reportagem. Em nota, a corporação disse que “o processo se encontra em estágio de finalização e assim que for concluído será divulgado”.  

A reportagem entrou em contato com a Procuradoria Geral do Estado (PGE), órgão diretamente subordinado ao governador, que tem por finalidade a representação judicial e extrajudicial, consultoria e assessoramento jurídico do Estado. A PGE informou que, por lei, já não atua mais nos processos administrativos e sindicâncias. E que no Caso Geovane, a Corregedoria da Polícia Militar tem total autonomia.  

Omissão
Na busca por justiça, parentes de Geovane foram à Defensoria Pública do Estado (DPE/BA), que passou a acompanhar o caso pela Coordenação Especializada de Proteção aos Direitos Humanos. A DPE foi procurada pela reportagem, que por sua vez, informou que este ano encaminhou quatro ofícios à Polícia Militar. Em dois, a Corregedoria da PM informou que o PAD já está no Quartel dos Aflitos. No terceiro e no quarto, enviados em maio, a DPE pediu uma reunião com o Comando-geral da PM, mas não recebeu resposta. 

Diante da omissão, a DPE/BA encaminhou, em julho, outros dois ofícios. Um deles solicita a atuação do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) no Caso Geovane. O órgão é um colegiado de composição paritária que visa promover a defesa dos direitos humanos no Brasil via ações preventivas, protetivas, reparadoras e sancionadoras de condutas e situações de ameaça ou violação desses direitos, previstos na Constituição Federal e em tratados e atos internacionais ratificados pelo Brasil. Está ligado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A DPE ainda não recebeu posicionamento do CNDH. 

O outro documento foi encaminhado à Coordenação das Promotorias de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público. Em nota enviada à reportagem, o MP-BA disse “que o ofício está em análise na 6ª Promotoria de Justiça de Controle Externo da Atividade Policial de Salvador”.  

A defensora pública Lívia Almeida, coordenadora da Especializada de Proteção aos Direitos Humanos da DPE/BA, comenta o que ela chama de ‘ausência de resposta disciplinar’. “A lei 7990/2001 prevê um prazo de 60 dias, prorrogável por mais 60, para conclusão do processo administrativo disciplinar. É um prazo impróprio, ou seja, não tem sanção nem perda de prazo em caso de descumprimento. Mas impõe um parâmetro a ser seguido. Nesse caso, esse prazo já foi muito ultrapassado. A família de Geovane e toda a sociedade, por se tratar de um caso de extrema violência, precisam da resposta do Estado”, declara a defensora. 

Apesar de não ter função de reparação, a DPE/BA cuida para que essa função seja realizada. “A Defensoria não tem atribuição correicional, não tem a função constitucional de exercer o controle externo da atividade policial, tampouco podemos condenar ou absolver. Então, nosso papel é atuar para que as instituições com essas atribuições possam exercer seus papéis. Sempre representando os interesses das famílias, que são as vítimas indiretas dessas atuações ilegais do Estado. Por isso é tão importante a conclusão desses processos”, explica Lívia Almeida. 

Geovane foi morto de joelhos

Geovane Mascarenhas de Santana, 22, foi morto na Rondesp, Lobato, diz denúncia feita pelo Ministério Público Estadual (MPE) à 1ª Vara do Tribunal do Júri, em abril de 2015. 

De acordo com a denúncia, Geovane foi morto por decapitação, de joelhos, depois de ser colocado no fundo de uma viatura da Rondesp e conduzido sem que “estivesse na prática de qualquer delito que justificasse sua prisão”.

Ao todo, 11 policiais foram denunciados pela promotora Isabel Adelaide Moura, com base em inquérito instaurado pelo Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP). No entanto, no decorrer do processo, quatro foram inocentados. 

O crime, cometido em 2 de agosto de 2014, foi apurado depois que o CORREIO denunciou o desaparecimento do rapaz, no dia 13 daquele mês. O jornal revelou imagens da abordagem policial em que Geovane é levado pela Rondesp.

A investigação mostra que os policiais desligaram o GPS da viatura 2.2211 e cortaram a fiação da câmera instalada no carro, o que demonstra que os acusados “já com o objetivo de agir ilicitamente, tentaram inviabilizar eventual controle de suas ações”. Por fim, eles elaboraram relatório de serviço descrevendo que naquele dia tinham feito rotas e rondas em locais “absolutamente diversos” do real.

O que os policiais provavelmente não sabiam — e que permitiu à polícia apurar as reais localizações — é que o GPS, mesmo desligado, emite sinais a uma central em outro estado e que o radiocomunicador portátil (HT) usado por Jesimiel registrava a localização. Além disso, as localizações das viaturas 2.2204 e R-10 foram emitidas pelos rádios fixos.

A denúncia não deixa claro o motivo do crime. Fala apenas em motivação “torpe, considerando que agiram os acusados em comunhão de ação e desígnios, em uso de autoridade conferida pelo Estado, para sequestrar e matar”, diz o MPE.

O documento revela ainda que o soldado Jesimiel conhecia Geovane e o identificou na abordagem na Rua Nilo Peçanha — já que ele estava sem capacete — e que a ex-companheira de Geovane é prima ‘carnal’ da esposa de Jesimiel. Há relatos de que havia antipatia do policial pela ex da vítima.

Defesa alega que PMs  são inocentes

O advogado Dinoemerson Nascimento, que defende os PMs acusados no Caso Geovane, não confirma se seus clientes estão nas ruas. “A recomendação é que todos estejam no serviço administrativo. Até porque, eles não têm condições emocionais, psicológicas de trabalhar no operacional. Todos estão com depressão, por terem sido acusados de algo que não cometeram”, declara. 

Dinoemerson diz que os seus clientes foram denunciados pelo MP sem provas materiais. “Dizem que os restos mortais de Geovane foram conduzidos nas viaturas, não foi? As viaturas ficam no DHPP e não foi feito nenhum tipo de exame para ver se tinha algum material biológico. Por quê? Outra coisa: o vídeo exibido como denúncia não foi periciado e por isso não há comprovação de que as pessoas nas imagens são Geovane e os policiais acusados”, pontua.  

Sobre as outras provas relatadas na denúncia, Dinoemerson diz que são ‘falácias’. “Tudo apenas no relato, nada de comprovações. O superintendente da Centel (Central de Telecomunicações) disse, na ocasião, que a questão do GPS não é fidedigna e citou que teve viatura que estava em Paripe e o GPS acusou essa viatura na Ilha de Itaparica”. 

O advogado relata ainda que a principal testemunha do MP é um traficante. “Ednelson estava preso à época e fugiu. Ele era o líder do tráfico no local onde os restos mortais de Geovane foram encontrados. Ele era rival de Geovane, que tinha sido jurado de morte. Inclusive teve articulação pra tentar matá-lo, sendo que na primeira vez ele [Geovane]  foi baleado no braço. Agora, como é que uma pessoa que é rival da outra é chamada para depor contra si? Claro que vai botar na conta dos policiais. Não tiveram o cuidado de procurar verificar indícios científicos. Tudo foi feito no ‘eu ouvi dizer’”. 

O MP-BA diz que não vai comentar as declarações do advogado. Já a Polícia Civil enviou nota dizendo que “o inquérito policial relacionado ao caso foi concluído com todas as análises periciais devidamente solicitadas e realizadas pelo Departamento de Polícia Técnica (DPT), posteriormente encaminhado ao Ministério Público, não constando nenhuma solicitação de nova diligência até o presente momento”, diz o texto.

Filme revela luta da família

O choque  diante da barbaridade do Caso Geovane motivou o cineasta francês radicado na Bahia, Bernard Attal, a realizar o documentário ‘Sem Descanso’, que estreou em novembro de 2020 em várias cidades do país. O filme registra depoimentos de familiares da vítima e ouve especialistas que falam sobre direitos humanos, analisando o histórico de violência da polícia militar no Brasil.

Veja o trailer do documentário Sem descanso

O cineasta soube do crime depois que o CORREIO, primeiro veículo a noticiar o caso, publicou uma série de reportagens. A saga de Jurandy Silva de Santana em busca do filho também ficou conhecida do outro lado do Atlântico. Sem Descanso foi apresentado no 21º Festival de Documentários de Thessaloniki, na Grécia, em março de 2019.

Fonte: Agência Brasil

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